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Rua da Bainharia
Agora que ele já desapareceu como posta regada com azeite, fica aqui a sua recordação no formato espalmado, esfiapado ou em cabeças, tal como podemos encontrá-lo nas mercearias tradicionais do Porto. Continua a ser o sabor da noite de Natal, hoje, como há cem anos atrás:
As famílias geralmente não jantam; n’esse dia apenas lancham e das 7 para as 8 horas da noite, pouco mais ou menos, começa a ceia da consoada, que é somente composta de pessoas da família e exclusivamente obrigada a peixe, não faltando nunca o tradicional prato de bacalhau cosido com as couves, que vimos em tão grande abundância nos mercados. Há creadas, dignas discípulas de Brillat-Savarin, que fazem seis e mais variedades de iguarias de bacalhau, e creiam os leitores que o fiel amigo e as couves attingem, nesta época, preços sensivelmente elevados. A ceia é abundantíssima, bem regada com os preciosos vinhos do Alto Douro, bem adoçada com as rabanadas, e emfim qualquer chefe de família portuense pode dizer, sem perigo de faltar à verdade, que Lucullo ceia n’esta noite com Lucullo.
De M. R. d’Assis e Carvalho, no Tripeiro, de 20 de Dezembro de 1909 DPontes
O homem do barrete vermelho está cansado, mas ainda deve ter forças para descer pela chaminé. Um Bom Natal com um bom Porto. DPontes Foto de Pedro Ivo Carvalho
Está confirmado: os portuenses foram atacados pelo febre da árvore luminosa. A cenoura para chamar gente para a Baixa funcionou. DPontes Foto Pedro Ivo Carvalho
A cidade do Natal é generosa. Há gente na rua como nunca, há música, luzes, e todos têm autorização para, nem que seja por um instante, voltar a ser criança, nem que já não acreditemos no Pai Natal. Deleitemo-nos com as montras, especialmente com as das velhas mercearias, que nesta época voltam a fazer todo o sentido. Há que procurar aqueles sabores ancestrais, longe da frieza mecanizada dos hipermercados, que são a cola com nos une à volta das mesas. O que as “asaes” ainda não extinguiram, está aí para deleite da boca e também dos olhos. Com que história se escreverá o mistério que leva tantas lojas a terem um estilo de letra tão similar? Será que existe um oculto livro de estilo, ou um artesão obscuro que se encarrega de lhes traçar a forma? É uma bela prenda para desembrulhar. DPontes
Rua Morgado Mateus. DPontes
Na véspera de Natal, logo de manhã cedo, os mercados do Anjo e do Bolhão, duas velhas construcções impróprias do Porto e que diferentes vereações teem debalde tentado substituir por mercados elegantes e à altura da cidade, estão muito movimentados e regorgitando de flores, aves, fructas e verdadeiras montanhas de couves.
Devemos notar que no Porto o peru não é tão usado pelo Natal, como em Lisboa, mas, em compensação, toda a gente, mesmo a mais pobre, compra uma franga ou um gallo, para o jantar do dia seguinte,
As mercearias e as doçarias (nome que aqui dão de preferência ás lojas de confeiteiro), teem enorme quantidade de bolos e pastéis, sobressaindo os enormes pão-de-ló de Margaride… feitos aqui no Porto. Estes estabelecimentos presenteiam os seus fregueses de todo o anno com um brinde, isto é, dão a consoada, que consiste n’um queijo d’uns dois kilos, n’uma garrafa de vinho fino, ou n’outra qualquer cousa equivalente.
As padarias fabricam para este dia os pães compridos, de cêrca de um metro, análogos aos que se usam permanentemente em França, e que vulgarmente chamam aqui de cacetes; estes pães são para o fabrico das fatias d’ovos ou douradas, como nós lhe chamamos no sul do paiz, e que no Porto teem o nome de rabanadas que se adoçam com o mel, que as mulheres apregoam pelas ruas em potes de lata que trazem à cabeça."
De M. R. d’Assis e Carvalho, no Tripeiro, de 20 de Dezembro de 1909 DPontes
Campo Alegre. DPontes
O que esteve em causa não foi só, obviamente, o facto de as autoridades terem deixado passar o 10.º aniversário da classificação do Centro Histórico do Porto a Património Cultural da Humanidade quase sem uma palavra. As celebrações podem ser sempre uma coisa vazia de sentido até porque, perante o abandono a que está votada a zona nobre da cidade, não há, de facto, muitas razões para celebrar. Mas a falta de amor-próprio perante a riqueza patrimonial da cidade, que suscitava a estranheza dos turistas interrogados na semana passada pelo JN, é o sintoma de um mal-estar, que deve mexer com as consciências de todos aqueles que se querem reclamar herdeiros de uma história que só pode estar longe de acabar.
Por isso, o movimento de cidadãos que, este ano, pelo 11.º aniversário, decidiram, com alguma ingenuidade e muito voluntarismo, comemorar o Património Mundial, deve ser olhado como um exemplo de cidadania, independentemente da contabilidade final dos que decidiram dizer “presente” no momento da celebração.
Sem máquinas partidárias, sem dinheiro, numa noite fria de um dia de trabalho, unir algumas centenas de pessoas à volta de uma causa sem ganhos imediatos para os presentes é um feito, apesar de se poder esperar mais . Mas o maior ganho é o facto de a iniciativa ter ajudado a chamar a atenção para a decadência a que continuam votados alguns dos centro históricos das nossas cidades, já que este não é só um problema do Porto.
O complicado problema urbanístico e social que representa o abandono dos centros históricos, não pode ser motivo para desistências, num país empenhado em aeroportos e comboios de alta velocidade. Se não temos o orgulho suficiente para defender a alma das nossas cidades, tenhamos pelo menos a visão para perceber a riqueza, a verdadeira indústria alternativa, que, para cidades como o Porto, representa a exploração turística do seu património.
O outro bom sinal da iniciativa deste “imPORTO-me” foi o de mostrar, claramente, que há vida para além do Estado, para além dos partidos, que cresce a vontade dos cidadãos se movimentarem contra as lógicas estabelecidas. E também não terá sido por acaso que a celebração teve como epicentro as escadas do Palácio da Bolsa, sede da Associação Comercial do Porto, que, com o seu estudo sobre novo aeroporto de Lisboa, mostrou que ainda há vozes a norte do Mondego que não se conformam. DPontes . Publicado no JN, a 4/12/07
Porto Património Mundial, 4 de Dezembro de 2007. DPontes
Quem colecciona o vetusto Tripeiro só pode ver esta edição como uma bênção. Reunidos num só volume de quase 700 páginas, pelo trabalho laborioso de Carmo Ferreira, abarcando praticamente 100 anos da publicação, está o índice temático do Tripeiro. Um guia para irmos de "A 'baixa' como símbolo da cidade" até "Zurich", sem nos perdermos. E, ainda por cima, a edição da Campo de Letras, tem um CD que permite uma busca facilitada. O que é que se pode pedir mais? DPontes
No dia 4 de Dezembro, façamos também a guarda ao Porto Património Mundial. DPontes