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Eu tenho saudade das bisnagas de água. Na altura do Carnaval, ganhávamos licença de porte de arma e durante algumas horas podíamos molhar sem piedade. Mas do Carnaval popular, nunca me ficou tradição, esmagada que foi pelos encontrões para ver passar, num qualquer dia perdido, o desfile de música brasileira e do rei momo com cara de televisão. Ao Porto aconteceu-lhe algo semelhante e perdeu-se o gosto pela loucura selvagem das partidas na rua, do século XIX, e dos grandes cortejos organizados, a partir de 1904, pelo Clube Fenianos.
Dois extractos para evocar essas duas épocas:
“O Porto afigurava-se então, em dia de Carnaval, vasto campo de batalha, em que os ovos, as laranjas, a água, a farinha e a cinza do borralho eram as armas de um combate ferocíssimo, de que no fim só havia a lamentar o trabalho de limpar o cabelo e lavar a cara, o que nem todos faziam nesse mesmo dia”.
Arnaldo Gama, “Um motim há cem anos”
“Entrudo de cidade, com cores e feitios de trinta mil espécies. Conto de velha, à lareira, na rua de Santa Catarina. Graças, monstruosidades… Ficou-me, de memória, uma bicha a que chamavam hidra. Teria sete cabeças, teria… Mas só me lembro do corpo. Vi-a, de cimo do mocho, mover-se morosamente na rua de Santa Catarina.”
João de Araújo Correia, no Tripeiro de nº 10 de 1954
Elementos do Clube Fenianos
Ilustração Portuguesa, Março de 1905
DPontes
O evento era o mesmo, a Essência Gourmet. O espaço para cada stand era similar. O de Matosinhos tinha destaques para o património, para os arquitectos, para a gastronomia. O do Porto tinha...o que está à vista.
Mas grande aposta ganha neste fim-de-semana foi a da Essência do Vinho. A mostra, que permite um contacto directo dos consumidores com os produtores e provar muito do que muito bem se fermenta por aí, provocou uma verdadeira romaria em direcção ao Palácio da Bolsa e ao Mercado Ferreira Borges. Era passear pelas ruas circundantes para descobrir como, subitamente, uma garrafa e um copo se tinham tornado em acessórios de moda obrigatórios. Uma iniciativa que só reforça a ideia que circulou por aí em tempos que, a exemplo de Bordéus, o Porto podia receber um grande festival dedicado ao vinho. Bebamos à ambição. DPontes
De onde fará sentido começar esta viagem? Do alto da escarpa de onde dominava o bispo? Junto à estátua do “Porto”? Subindo à Torre dos Clérigos, ou olhando o Douro na Ribeira? Porque não na nova Casa da Música, ou então fazendo as despedidas ao Bolhão? Se calhar olhando a água a brotar da fonte da Colher, ou numa nova loja da rua do Almada. E se esquecermos o onde e escolhermos o como, em forma de gesto simbólico? Bebendo um copo de Porto, saboreando as tripas à moda do Porto, lendo um livro do Porto, molhando os pés no Atlântico? E porque não contrariar esta cidade que se estende para o mar e para o rio e procurar aquilo que quase nunca vemos: o nascer do sol?
É por este momento que faz sentido começar, numa cidade em que tantas vezes falta a luz. Ela virá lá de longe, do continente a que viramos as costas, do interior que esquecemos, para, oblíqua, começar a abrir as ruas, as portas, as janelas que a noite emudeceu. Ainda antes de se mostrar no céu, ela é o sussurro que ergue os cobertores, entrado pelas frinchas da janela, o sinal de partida unificador que nos devolve à cidade. Escolhamos o nascimento de cada dia.
É preciso encontrar um observatório perfeito que diga ainda mais deste Porto. E acho que há um sítio assim. Encontro-o a bordo do metro, entrando na antiquíssima ponte Luís I, de olhos postos no tímido horizonte de luz. É por aqui que vamos começar. DPontes
Foto Adelino Meireles